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Para Além das Feridas: Uma Crônica da Medicina nas Ruas

Foto do escritor: Josué Andrade MartinsJosué Andrade Martins

Foto: Josué Andrade Martins

No domingo, como tantos outros médicos e acadêmicos de medicina, eu levantei cedo, organizei meus equipamentos e me dirigi ao Castelinho da Rua Apa, próximo ao Minhocão. Havia um longo dia pela frente. A previsão era de que atenderíamos cerca de seiscentas pessoas em situação de rua, mas esse número sempre pende para mais.

Carregamos os materiais, montamos as tendas, distribuímos as macas, voluntários iam chegando e se inserindo nessa esteira de trabalho - Estava tudo pronto para os trabalhos começarem. Aos poucos, conforme a triagem avançava, jalecos brancos e figuras em vestes trapistas se encontravam e os estetoscópios refletiam ao sol escaldante.


Foto: Josué Andrade Martins

Eu não entro nessa dinâmica, porque preciso estar disponível para o caso de surgir algum incêndio para apagar. É nesse período que eu aproveito para capturar algumas fotos, então meus equipamentos, em dias comuns, se resumem a uma câmera, uma lente e um bom par de olhos. Sempre, no entanto, há incêndios.

As chamas daquele dia me consumiriam por algumas horas.

Foto: Josué Andrade Martins

Já estávamos funcionando há cerca de uma hora, quando a enfermeira chefe me chamou e disse que precisávamos sair de nosso posto para atender um morador que se recusava a vir até nós. Enquanto preparavam a bolsa de suprimentos, chamei mais uma médica e outra acadêmica.

Depois de uma breve caminhada, chegamos ao local do paciente. Encontramos um senhor por volta dos seus 65 anos, deitado sobre uma caixa de papelão, ao lado do que parecia uma poça de urina, posicionado em padrão espástico - talvez já tenha sobrevivido à um AVC, mas isso são confabulações de minha cabeça. Suas unhas estavam enegrecidas por sujeira, as porções do cabelo que lhe restavam, entrelaçados. Seu corpo era marcado por feridas de todos os tipos: abertas, inflamadas, purulentas, cicatrizadas.

Ele se pôs sentado e pudemos perceber seu corpo sacolejar para frente e para trás em um vai e vem eterno. Ao examiná-lo, pudemos atestar uma espécie de tumoração violácea logo acima da região proximal da ulna. A pele parecia frágil naquela região, como se fosse estourar apenas com um olhar mais afiado. Alí, debaixo do Minhocão, no calor, longe de aparelhos sofisticados, não poderíamos fazer nada por ele. O máximo que tínhamos nas nossas mãos, era a prescrição de antibióticos - sabe Deus se ele irá usar - e alguns cuidados de higiene, mas para isso, ele precisaria ir até nosso posto, ao que ele se recusava veementemente.

- Desgraça! - chamou a vizinha, comendo a marmita com as mãos, em um timing perfeito e totalmente independente de nosso atendimento.

E, inconsciente, concordei. Desgraça!

Fizemos um último convite e tivemos que voltar. Cada passo que eu dava era mais falho que o anterior. A cabeça pesava. Meus ossos doíam. Estávamos lá, a progressivos metros de nosso paciente, impotentes. A culminação de séculos de estudos era obsoleta diante de uma realidade áspera que não se importava com dores e esforços. Cruel e inflexível realidade. Desgraça!

As vozes abafadas ao meu redor. O que fazíamos ali, naquela rua, pareceu-me tão fino e frágil quanto o gelo matinal de uma noite fria. A câmera, tão supérfula, soou deslocada naquele ambiente. O incêndio fora apreciado, porém, não extinto, e eu estava de volta à minha função. Mas como retornar de verdade? Cliques vazios e sem propósito. Desgraça!

Meu peito doía. Minhas têmporas se espremiam. Eu era diminuto. Bravos estetoscópios, esfigmomanômetros tilintavam para uma batalha perdida em um mundo cinza. Desgraça…

… Não ocorreram mais incêndios naquele dia. No entanto, não foi até uma das últimas fotos que as brasas de meus pensamentos se acalmaram.

Foto: Josué Andrade Martins

Eu estava tirando algumas fotos institucionais quando uma das senhora que fora atendida mais cedo brada, entrando no foco da câmera:

- Vocês transformaram vidas hoje… Deus abençoe vocês.

Lágrimas invisíveis escorriam.

Revisando as fotos, hoje, percebo os sorrisos, daquele domingo, que meu cinismo ignorou. Estes sorrisos importam. Essa felicidade perfura as barreiras daquela realidade. Vejo crianças se divertindo, pessoas sendo ouvidas. Vejo união. Vejo a medicina de rua pelo que ela é, não apenas sobre tocar feridas, mas sobre tocar almas. Com frequência somos tocados também.

Foto: Josué Andrade Martins

Ainda não tenho os números, mas uma grande quantidade de pessoas foram atendidas no domingo. Medicamentos foram dispersados e, com sorte, vidas foram salvas. Se me permite o trocadilho de baixíssima qualidade, é o que acontece quando a gente se entrega.

Por fim, pouco antes da ação acabar, um homem em vestes trapilhas sacolejando para frente e para trás veio ser atendido em nosso posto.

Às vezes, a medicina de rua é ingrata, mas as pessoas não.

Foto: Josué Andrade Martins








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